Leia na íntegra a transcrição do nosso episódio sobre Brexit com Chris Bickerton, da Universidade de Cambridge (EM PORTUGUÊS)

Tempo de leitura: 11 minutos

Para acessar a transcrição original em inglês clique aqui

 

Leticia Dáquer: OK. Então, olá, prazer em te conhecer, posso te chamar de Chris? 

 

Chris Bickerton: Sim, Chris tá bom.

 

Leticia: OK. Normalmente a gente começa pedindo aos nossos convidados que se apresentem aos nossos ouvintes, então se você puder dizer quem você é, onde você tá e por que nós te convidamos…

 

Chris: Bom, meu nome é Chris Bickerton, estou baseado na Universidade de Cambridge, eu ensino e trabalho e pesquiso principalmente política europeia contemporânea… E venho seguindo, acho que assim como todo mundo que tem interesse na política britânica, o processo do Brexit, ao longo dos últimos 3 anos, e eu tenho mais interesse na resposta da esquerda à integração europeia e na posição da esquerda britânica sobre o Brexit.

 

Leticia: Olha, então você é exatamente o que a gente precisava hoje.

 

Chris: Que bom.

 

Leticia: Graças a deus, graças aos céus pela Marta! Ok, então, queríamos saber, e isso vai ser curto porque ainda temos que transcrever e traduzir isso, como eu te disse, então… Depois de ver um vídeo, uma entrevista com o Galloway, e ele tava mencionando a necessidade de… de se deslocar mais pra esquerda ainda, porque o que consideramos esquerda hoje não tá funcionando. Tá muito afastada dos trabalhadores, do povo, não se comunica, não… Não consegue se colocar no lugar, ela se tornou… Ele fala de uma esquerda burguesa, que não consegue se colocar no lugar das pessoas e entender pelo que elas estão passando. Então, segundo ele, nós precisamos ir mais pra esquerda ainda. Você acha isso também? Você concorda com ele?

 

Chris:  Ah, eu acho que provavelmente é um pouco mais complicado, eu acho que… O Labour Party fez duas coisas nos últimos anos, e essas coisas estão indo em direções opostas. Então sociologicamente o partido definitivamente vem sendo dominado por eleitores bem jovens, que vivem em centros urbanos, sabe, em cidades grandes, principalmente em Londres, e em algumas das cidades universitárias do sul… Acho que um tipo de grupo de classe média, intelectual, bem jovem de eleitores, mas especialmente de membros. Mas ideologicamente o partido foi muito pra esquerda, desde que o Corbyn se tornou o líder o LP deixou pra trás muito do que nós chamávamos de New Labour, e ficou muito mais comprometido com o socialismo, pelo menos na língua dos líderes do partido, e o manifesto que eles apresentaram nas últimas… nas eleições do mês passado foi um manifesto de esquerda bem radical, empenhado com a transformação socialista. Então eu acho que o problema com o LP não é ter se tornado um partido burguês como o Galloway diz, o problema é, se você quiser ser mais específico, é que você tem esse movimento contraditório entre esse salto ideológico pra esquerda e o movimento sociológico na direção do centro.

 

Leticia: Hmmm OK. Por que você acha que isso… que a esquerda foi dominada por esse grupo de intelectuais e tal, o que aconteceu? Por que ela não tá dominada por trabalhadores e por sindicatos do jeito que deveria, talvez, de acordo com o que a gente imagina? Quando a gente pensa na esquerda, pensamos em trabalhadores, né, e o que aconteceu? Por que agora é essa espécie de elite intelectual que tá controlando as coisas?

 

Chris: Sim, eu acho que é interessante que provavelmente tem vários motivos diferentes. O LP no Reino Unido não abandonou as suas relações formais com os sindicatos. Os sindicatos, especialmente alguns como o Unite, têm um papel muito importante na gestão do partido, e ainda existe uma dependência econômica do partido com relação aos sindicatos e às contribuições que eles fazem. Então eu acho que o que eu disse sobre a sua transformação sociológica deve ser combinado com o fato de que, sabe, as origens deles como um partido formado por sindicalistas, por trabalhadores, auto-organizados e auto-representados, elas ainda sobrevivem nessas relações que o partido   tem com os sindicatos. Mas, como nós sabemos, e certamente no caso do Reino Unido, o papel que os sindicatos têm na estruturação da vida social é muito diferente do que já foi um dia, e o efeito do governo conservador nos anos 80 sobre os sindicatos foi muito intenso, então eu acho que os sindicatos existem como uma espécie de grupo de interesse bem organizado, mas não têm o mesmo tipo de autoridade sobre a sociedade como um todo, algo que acontecia com as classes trabalhadores britânicas. Então você tem esse, esse papel dos sindicatos. De resto, eu acho que provavelmente é uma mistura de coisas, sendo que algumas têm a ver com o fato de que quando o LP se transformou nesse partido de centro, nesse Blairismo dos anos 90 representando uma terceira via, o Blair tocava o partido e ele frequentemente brigava com o partido. Os ativistas frequentemente estavam mais à esquerda ideologicamente do que a liderança do partido. Então o que o Blair tentou fazer foi cortar, por assim dizer, a parte mais ativista dos membros do LP, e tornou mais fácil se filiar ao partido, era possível entrar pro LP e não fazer praticamente nada, como quando a gente faz com a Anistia Internacional, você paga a sua contribuição mensal e pronto. Era muito diferente antigamente, quando pra ser membro de um partido você participava de reuniões toda semana e fazia parte da organização do partido em nível local, de comitês e coisas assim. Então ele transformou o partido dessa forma, como uma maneira de se livrar do LP e de falar muito mais diretamente com os eleitores. O que vem acontecendo desde o Corbyn é que muitas pessoas se filiaram ao partido e a eleição do líder foi aberta pra todos os membros, em vez de somente pros membros dos Partidos Parlamentares, só os MPs, e a natureza dessa filiação é, eu acho, muito diferente. É muito mais tipo… ativistas e muito mais envolvidos. Então eu acho que tem um tipo de geração de pessoas que não representam necessariamente a sociedade como um todo, a sociedade é muito mais diversa e muito… Mas mesmo assim é um grupo organizado, quer dizer… Grupos como o Momentum, uma espécie de organização nacional dentro do LP, uma geração de, sabe, ativistas que conseguiram realmente tomar conta do LP e através da liderança conseguiram criar esse partido muito mais radical. Mas a identidade social desses ativistas é a que eu descrevi pra você. É gente millennial, muito baseada em Londres, com muita educação formal, com muito interesse em ideias, e… em conectar ideias e políticas, e eles não têm nenhuma relação direta, até onde eu sei, com outros elementos e estruturas da sociedade britânica. E o erro do LP, eu acho, foi que ao longo do tempo ele se tornou uma espécie de bolha, sociologicamente e ideologicamente. E quando você testa essa bolha lá fora, nas eleições gerais, você percebe que era só uma bolha mesmo.

 

Leticia: Sim. Isso é exatamente o que a gente viu no primeiro plebiscito, né? Que Londres teve um resultado completamente diferente sobre o Brexit quando comparada com o resto do país. E aconteceu de novo, né? No segundo plebiscito (eleições gerais). Ninguém aprendeu nada? Por que nada mudou entre os dois eventos, o que aconteceu? Porque as pessoas talvez esperassem um resultado diferente, já que a gente meio que entendeu o que tinha acontecido da primeira vez, e agora aconteceu novamente. É algo do tipo “ah é, quer sair, então sai pra ver o que é bom pra tosse”, ou algo mais deu errado ainda mais do que antes? O que você acha que aconteceu?

 

Chris: Quando você fala do primeiro e do segundo plebiscito, o que você quer dizer exatamente?

 

Leticia: Porque no primeiro plebiscito o resultado foi um choque, ninguém tava esperando…

 

Chris: Em 2016?

 

Leticia: Sim! Porque houve uma diferença muito grande entre Londres e o resto do país, e ninguém tava esperando aquilo, porque não parecia… não parecia lógico que alguém pensasse sobre isso e chegasse à conclusão de que realmente seria ótimo sair da UE, né? E aí aconteceu de novo, e agora temos o Boris Johnson e temos todas essas coisas que ninguém entende de onde vieram. Então eu… Pelo que eu ouvi aqui na Itália, e no Brasil também, algumas pessoas tavam comentando assim, tipo, “o que houve???”, porque a gente achava que tinha entendido o que tinha acontecido na primeira vez então talvez algo tivesse que ter sido feito pra mudar as coisas e ter um resultado diferente nas eleições. Mas aí, Boris Johnson! O que houve? 

 

Chris: Eu acho… Acho que é uma lição a ser aprendida sobre ter um pouco de… cuidado sobre a maneira que a gente usa pra se informar, onde a gente se informa… Porque é possível, como eu disse, que as pessoas estejam funcionando mesmo em uma espécie de bolha. Acho que isso tem a ver talvez com uma… uma interpretação errada do voto do Brexit original. Em 2016, quando as pessoas votaram pra sair da UE, a reação de muita gente favorável a permanecer foi “ah, as pessoas foram enganadas por esses slogans mentirosos”, “as pessoas não sabiam direito sobre o que estavam votando”, “elas estavam erradas”, e aí depois de 3 anos ficaria mais evidente que, sabe, tudo isso tinha sido um erro e as pessoas iam notar e votar de outra forma. E eu acho que a gente sabe desde o começo que essa é uma leitura muito perigosa a ser feita sobre os motivos pelos quais as pessoas votam. Acho que as pessoas votaram em grande parte porque realmente queriam sair da UE, e não foi porque eles entenderam errado, essa era mesmo a visão deles sobre a UE. Aí você chega em 2019, no final de 2019, e muita gente que tinha passado por anos desses debates parlamentares e negociações e um monte de votações que foram rejeitadas… E o que elas viram foi essa incapacidade do Parlamento de simplesmente seguir o resultado do plebiscito, e aí um partido disse, olha, a gente vai fazer o Brexit e ponto final, era esse o slogan deles. E se o que te interessa é sair da UE, então você vai votar no partido que vai tirar você da UE. E se a nossa análise é a de que as pessoas estavam erradas quando votaram antes e que agora certamente vão perceber que cometeram um erro, então a gente nunca vai entender a dinâmica da coisa. E certamente durante boa parte da campanha… Foi só no finzinho, eu acho, que os ativistas e alguns líderes do LP perceberam que eles tinham subestimado a vontade de muitos eleitores no norte da Inglaterra, que tinham votado pelo Brexit, de votar no Partido Conservador pra conseguir o Brexit. E de abandonar o LP, no qual eles vinham votando há muitos, muitos anos. Foi só no finzinho que eles começaram a perceber que talvez esses eleitores não iam votar neles. E não votaram mesmo. E o LP perdeu de lavada. Então eu acho que parte do problema é o fato de que eles subestimaram a disposição das pessoas em votar em qualquer partido que simplesmente prometia dar o que eles queriam, que era tirar o Reino Unido da UE.

 

Leticia: Você acha que os sindicatos vão se fortalecer depois disso, como uma reação a essa perda de conexão com os trabalhadores (que levou à vitória dos conservadores)?

 

Chris: Os sindicatos de categoria?

 

Leticia: Isso.

 

Chris: Não sei, eu acho que… Quer dizer, de certa forma eu acho que a resposta dos sindicatos pode ser que eles tenham que mudar o seu jeito de organizar e tentar e se reconectar com muitos eleitores, mas o tipo de mudanças que estão acontecendo em todo o movimento dos trabalhadores tem a ver, em parte, com políticas de derrotas do passado, certamente, especialmente as derrotas pra Margareth Thatcher, mas também tem a ver com a estrutura da sociedade britânica, que tá mudando, e com a dificuldade que os sindicatos têm de se organizar quando a sociedade não é mais reconhecível como uma sociedade industrial, onde você tem um esquema de classes muito claro. Esse novo tipo de sociedade, muito mais desorganizada, acho que é um problema com o qual o movimento sindical sempre teve dificuldade. E tem alguns, tem algumas tentativas de meio que recrutar trabalhadores que são, sei lá, flexíveis, ou trabalhadores em posições precárias, sim, os sindicatos estão sempre tentando se adaptar a essas coisas. Mas não tenho certeza, acho que a minha impressão é que pelo menos desde as eleições gerais não há nenhuma evidência de que os sindicatos ou o LP estejam realmente tentando mudar radicalmente o jeito deles fazerem as coisas. Acho que, pelo menos os candidatos parecem estar dizendo que, sim, precisamos repensar e nos adaptar, mas o lance de que o LP foi capturado por uma parte específica da sociedade e tá lutando pra conseguir falar com o resto da sociedade, eu acho que essa ficha ainda não caiu, pra ser sincero.

 

Leticia: Sim, nós vemos a mesma coisa acontecendo em outros países também, né. A esquerda tá meio que desconectada por causa dessa mudança nas sociedades como um todo, e são outros quinhentos no Brasil, porque nós não… Quer dizer, temos indústria, mas ainda temos muitos empregos precários, e muita gente que não estudou, e não temos um histórico longo de sindicatos e tal… É outra história. Mas de qualquer forma, vou fazer mais uma pergunta só e depois vou te liberar: e os zilhões de empregos que vão desaparecer com o Brexit, que é o que estamos ouvindo há muito tempo já, você acha que isso vai acontecer mesmo ou é algum tipo de terrorismo midiático pra fazer com que as pessoas mudem de ideia ou que tenham medo? Porque eu pessoalmente tenho muitos amigos que moram em Londres e muitos deles têm amigos que foram embora porque não têm certeza do que vai acontecer agora, especialmente com os vistos, mas com os empregos também. Porque as coisas tão mudando muito rápido e eles têm medo de não conseguirem mais ficar na Inglaterra, então estão indo pra outros países. E eles, os meus amigos dizem que isso vem acontecendo o tempo todo. Mas essas pessoas estão sendo substituídas por trabalhadores britânicos ou é só empresas fechando e empregos sumindo? Você acha que isso vai acontecer mesmo? Tá rolando nesse nível mesmo, das pessoas terem que ficar assustadas?

 

Chris: Hm, o maior impacto sobre as empresas, eu acho, e sobre a economia como um todo, sempre tem a ver com a incerteza. Então, de um ponto de vista mais geral, a economia do Reino Unido é razoavelmente robusta, é bem grandinha, tem muitos setores de ponta em nível mundial, e também é muito adaptável, por causa da flexibilidade desse mercado de trabalho. O que certamente tornou as coisas difíceis nos últimos anos é que têm havido muitos, muitos investimentos que foram colocados em stand-by, não necessariamente eliminados pra sempre, mas certamente colocados em stand-by, porque ninguém sabe como vão ficar as relações entre o Reino Unido e o seu maior bloco de comércio, que é o Mercado Comum Europeu. Esse tipo de incerteza não vai, eu acho, terminar no fim de janeiro de 2020, que é quando o Reino Unido vai sair da UE, porque tem um acordo de comércio que ainda tem que ser negociado com a UE. Pode ser que o acordo seja negociado rapidamente, ou não, mas eu acho que depois que houver uma certa quantidade de certeza sobre o tipo de relação que o Reino Unido vai ter com a UE, qualquer que seja essa certeza, qualquer que seja a forma que ela tomar, em parte porque… O medo, eu acho, é que haja um colapso total nas relações e o Reino Unido caia, mas isso foi evitado porque agora temos um rascunho de acordo, então pode ser que os medos apareçam de novo no fim do ano sobre o que vai acontecer se o Reino Unido não tiver um acordo antes de 2020 acabar. Mas mesmo assim, deixando isso de lado, mesmo se o acordo não for, sei lá, algo que as pessoas tenham idealizado, dependendo do setor onde elas trabalham, depois que você tem uma estrutura que dê certeza de um acordo, aí você começa a planejar pro futuro. Como eu disse, a economia do Reino Unido, bem, temos um mercado interno bem grande, mas também temos muitos setores competitivos, que eu acho que vão ser capazes de se adaptar. Em termos de migração, eu acho que é um pouco mais complicado. Acho que o impacto provavelmente vai ser ser mais sentido na composição da migração, e não no nível absoluto de migração propriamente dita. O Reino Unido tem um mercado de trabalho aberto e requer níveis muito altos de mão-de-obra de imigrantes pra se manter. É impossível conceber, da noite pro dia, que esses empregos hoje de imigrantes sejam substituídos por britânicos, porque eles simplesmente não existem. Ao longo do tempo, eu espero que as empresas britânicas comecem a investir mais em treinamento dos seus próprios funcionários, que é algo que elas sempre… Muitas delas conseguem evitar investir em qualquer tipo de treinamento, porque eles podem simplesmente ir contratar outra pessoa mais qualificada. E esse é um dos grandes problemas do mercado de trabalho aberto, eu acho, porque do ponto de vista do empregador, não do funcionário, mas do empregador, esse mercado é ótimo, porque você não precisa investir nos seus funcionários, basta contratar outra pessoa melhor, então os trabalhadores não têm poder de barganha. E desde 2016 a gente vem observando que os empregadores vêm investindo mais em treinamento e também em outros aspectos da tecnologia e da automação, simplesmente porque estão sendo forçados a fazer isso, a investir de maneiras que eles não precisavam fazer antes, porque eles podiam contar com mão-de-obra relativamente barata. Então eu acho que isso pode vir a mudar, e seria muito positivo, mas em termos de migração, acho mais provável que haja um tipo de… um efeito, que vai ser menos trabalhadores europeus vivendo no Reino Unido. Mas mais trabalhadores de fora da UE vão vir, então trabalhadores da América Latina, do subcontinente indiano, eles viriam e trabalhariam no Reino Unido simplesmente porque seriam tão competitivos quanto alguém vindo da UE, e então a composição da população de migrantes no Reino Unido pode se tornar um pouco menos europeia e mais global. Acho que é um efeito possível.

 

Leticia: Beleza. MUITO OBRIGADA pelo seu tempo, vou parar de gravar agora. Depois eu mando o link, quando o episódio sair, pra você ver como ficou.

 

Chris: Excelente.

 

Leticia: Obrigada MESMO, viu? O papo foi ótimo.

 

Chris: Prazer foi meu, foi ótimo conversar com você.

 

Leticia: Obrigada, ciao, tchau.

 

Chris: Tchau.  

 

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