Patrizia Dragoni

[DUBLADO] BÔNUS do epsiódio 051 – Entrevista com Patrizia Dragoni, professora da Universidade de Macerata, Itália

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Transcrição em Português do episódio 051 EXTRA – Entrevista com Patrizia Dragoni, professora da Universidade de Macerata, Itália

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[Leticia] Então, antes de qualquer coisa normalmente a gente começa pedindo ao convidado que se apresente, assim a gente sabe, quer dizer, quem ouve entende por que a gente convidou vocês. O que você faz, onde está, como foi parar lá, qual é a sua especialidade, coisas assim. Uma apresentação breve.

 

[Patrizia] Bom, sim, eu ensino Museologia na Universidade de Macerata, onde trabalho tanto com História dos Museus quanto de gestão de museus.

 

[Leticia] Ah, entendi. O que você estudou, enfim, pra depois trabalhar com isso?

 

[Patrizia] Eu sou formada em Letras, com orientação Histórica-Artística… 

 

[Leticia] Oh!

 

[Patrizia] Depois fiz especialização em didática geral e museal, e é isso, fui parar na universidade antes como “fellow researcher”, depois como pesquisadora, e agora sou professora associada, mas também já trabalhei dentro de museus, porque trabalhei muitos anos em colaboração com a Região Úmbria e ali eu fazia todo o trabalho de back office.

 

[Leticia] Ah, ok, então você conhece bem o trabalho ali das coxias…

 

[Patrizia] Escrevi catálogos, organizei mostras, escrevi guias curtos, folhetos etc.

 

[Leticia] Fantástico. Com a outra convidada a gente falou de um lado totalmente diferente da coisa, então falamos de histórias, de fofocas, histórias no sentido de causos, coisas assim. Mas como essa outra pessoa não trabalha diretamente com isso, é uma pesquisadora mas a formação dela é totalmente diferente, a gente ficou meio curioso com relação à parte de como funciona um museu, sabe. Falamos de furtos de quadros, de coisas assim, de falsificações… E antes de qualquer coisa, já que quem tá nos escutando provavelmente não tem ideia de como funciona um museu: como funciona a coisa? Tipo, quem escolhe quais são as obras que vão ficar expostas, quais ficam, sei lá, no depósito, as obras emprestadas de um museu pra outro, quem decide que exposição fazer, que obras selecionar, como funciona isso?

 

[Patrizia] Bom, vamos falar em geral, porque os museus são diferentes…

 

[Leticia] Sim, sim.

 

[Patrizia] Normalmente quem decide o que vai ficar exposto e o que não vai ficar exposto é o responsável, digamos assim, do museu. Um curador, onde houver um, porque sabe, na Itália as pessoas ligadas às profissões museais são um pouco diferentes, nem sempre existem. Quer dizer, depende se for museu estatal, ou cívico, mas enfim, vamos falar de um museu grande que tem um diretor, um conservador. Nesse caso a escolha é feita por eles, quando é modificado o acervo. Então se decide o que vai ficar exposto e o que pode ficar nos depósitos, em base à história que se deseja contar através do museu. Então é uma escolha crítica muito precisa, porque decidir o que você quer expor e o que você NÃO quer expor certamente muda um pouco a percepção da história das obras que você quer contar.

 

[Leticia] Hmmm. Sim, sim.

 

[Patrizia] E é isso, depois com relação aos empréstimos, é outra coisa, porque aí tem a ver com as mostras. Então uma mostra, que normalmente tem um tema específico, o museu que pede emprestado, dependendo da mostra, já tem um plano das obras que quer exibir, faz um pedido através de formulários específicos pro museu de quem ele quer pegar emprestado, e esse museu pode ou não emprestar, dependendo de vários fatores.

 

[Leticia] Hm.

 

[Patrizia] Ele decide, por exemplo, que vai emprestar porque essa mostra tem uma importância científica que merece o empréstimo.

 

[Leticia] Tá.

 

[Patrizia] Ou porque os curadores são prestigiosos, porque o museu pra onde vai a obra tem muito prestígio, porque assim a obra adquire maior visibilidade, ou então pode decidir o contrário, não emprestar, porque não considera a mostra importante, ou porque a obra é frágil e não pode viajar. Por exemplo, existem inserções em pastilha, um tipo particular de stucco dourado que é muito frágil, e pode se soltar com a movimentação. OU então a obra precisa ser exposta com critérios específicos de umidade, de temperatura, então são necessários parâmetros que devem ser mantidos iguais…

 

[Leticia] Entendi.

 

[Patrizia] …no seu local de partida e no local de chegada, então o museu pode decidir não emprestar, mas essas são todas operações que dependem obviamente dos responsáveis do museu.

 

[Leticia] Entendi. Tô ouvindo um barulho, é o microfone, tá batendo contra alguma coisa, não sei… 

 

[Patrizia] Ah, aqui. Tá ouvindo ainda?

 

[Leticia] Uhum. Ok. E uma coisa, já que a gente falou de furtos, e… rolam muitos, né, e de repente a gente pensa que é coisa de filme, mas na real a gente vê o jornal na televisão e vê que não é uma coisa tão incomum. Acontece, aconteceu esse ano, né, eu tava vendo as notícias na televisão enquanto esperava o avião pra vir pro Bras… pra Itália, e vi a notícia de um quadro que foi roubado, o fulano saiu na porta principal, pela porta principal.. Como é possível que estas coisas ainda aconteçam, quer dizer, o que deu errado quando acontece algo assim? Porque tá, nesse caso específico era alguém que trabalhava no museu, então eu entendo que obviamente quem trabalha ali sabe como fazer, né, se precisar fugir roubando alguma coisa ele faz porque sabe como. Mas pra quem não… Pros casos nos quais não é isso, é outra pessoa de fora que rouba, pega um quadro e leva embora, o que acontece?

 

[Patrizia] É, bom, isso também é difícil, porque normalmente os furtos acontecem quando o museu tá fechado. É um pouco mais fácil nesses casos, porque mesmo se os sistemas de alarme estiverem ativados, frequentemente os ladrões conhecem os alarmes e conseguem entrar por vias de acesso diferentes, por exemplo, a entrada do pessoal da limpeza…

 

[Leticia] Ok.

 

[Patrizia] Entradas de serviço… Frequentemente também acontece, por assim dizer, um apoio de alguém que trabalha dentro dos museus, que de repente deu informações e tal.

 

[Leticia] E essas coisas, essas obras roubadas, vão pra onde? Quer dizer, são furtos feitos a pedido de alguém, as obras têm um destino, uma destinação certa quando são roubadas, sei lá, onde vão parar normalmente essas obras?

 

[Patrizia] No caso do museu, frequentemente podem ser furtos a pedidos, porque as obras são tão famosas, tão conhecidas e catalogadas que dificilmente podem ser revendidas no mercado de antiguidades.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Normalmente os antiquários precisam ter, pelo menos na Itália, precisam ter listas das obras roubadas, que são publicadas todo ano pelos Carabinieri, pra Tutela dos Bens Culturais. Tem um núcleo especial dos Carabinieri que toma conta da tutela dos bens culturais, um núcleo que nasceu em 1969, é um dos mais antigos que existem sob esse aspecto, e que publica todo ano a lista das obras roubadas. Todos os antiquários precisam ter essa lista, porque se eles vierem a vender uma dessas obras, obviamente são passíveis de sanções penais.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Então quando as obras são roubadas, especialmente obras que se encontram em museus, digamos que tem um pedido por trás, então normalmente são furtos encomendados. Seria difícil revender, sei lá, um Rafael…

 

[Leticia] Sim. Então seria um colecionador, alguém que realmente tem esse sonho de possuir uma obra assim, enfim.

 

[Patrizia] Sim, normalmente, mas também acontece da pessoa desequilibrada, né, acontece, mas é bem difícil, isso acontece mais no caso de destruição, de danos…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …feitos às obras de arte, pode ser que apareça alguém que é meio perturbado, aí, como já aconteceu algumas vezes…

 

[Leticia] Ai, sim, sim…

 

[Patrizia] … esfaqueiam a obra ou atacam de alguma forma, mas no caso do roubo, normalmente é por esses motivos. Se são obras importantes, se são obras pequenas, tipo pequenas paisagens, essas podem ser mais interessantes pro mercado, porque é mais difícil encontrar elas depois, ou então… Mas são coisas que acontecem mais frequentemente nas igrejas.

 

[Leticia] Aaaaah ok.

 

[Patrizia] Nas igrejas pode acontecer que haja esses furtos, porque as igrejas obviamente são abertas ao público…

 

[Leticia] Aaaah sim, sim, e também todo o esquema de segurança que tem num museu normalmente não tem numa igreja, né, a não ser que seja uma igreja famosa e tal…

 

[Patrizia] Exato, a obra pode ser roubada, pode ser cortada…

 

[Leticia] Ah!

 

[Patrizia] …em pedaços, porque depois os falsários usam esses pedaços pra inserir em outras telas.

 

[Leticia] Oh!

 

[Patrizia] E a partir da obra grande eles criam outras obras diferentes. Aí você não encontra mais nada do original, porque é muito difícil, a obra já foi tão modificada que fica muito difícil encontrar novamente.

 

[Leticia] Caramba, não sabia disso. Que bosta! 

 

[Patrizia] Pois é, normalmente fazem assim pra não serem descobertos, e frequentemente usam também telas que são antigas, pra que a prova do carbono 14 diga que elas são antigas, mesmo com instrumentos técnicos…

 

[Leticia] Caraca, nunca tinha ouvido falar disso!

 

[Patrizia] Os falsificadores são talentosos, viu…

 

[Leticia] Caramba! E quando, entrando no lance das falsificações, já que você entrou no assunto, como, como se faz, porque a gente viu, eu tinha coloc… Tinha botado uns links também na… Na nossa pauta, no script que a gente usa pra fazer a gravação principal, a gente tinha botado algumas notícias de quadros que estão em um museu na França, não me lembro qual, que descobriu que tipo a metade das suas obras eram falsas. E como, como se faz algo assim? Porque eu entendo, e a outra convidada disse a mesma coisa, que são muitos especialistas envolvidos, é uma coisa meio subjetiva, porque não existe uma maneira de provar, especialmente se o falsificador consegue inserir um pedaço de obra antiga pra conseguir enganar até o carbono 14. Mas quem decide o que é um falso ou não é, com que frequência se fazem essas análises, porque de repente é um quadro que tá ali há muitos anos e ninguém teve a ideia de ir lá ver se é daquele pintor mesmo, e de repente alguém vai lá, olha e fala ‘olha só, esse aqui não é dele’, ‘nem esse’, ‘a metade dos seus quadros não foram pintados pelo pintor que vocês falaram’. Como acontece isso tudo?

 

[Patrizia] Como acontece, bom, normalmente pode acontecer quando há uma exposição…

 

[Leticia] Ih, tô ouvindo o barulho de novo.

 

[Patrizia] Ah, pode ser eu mexendo o dedo, viu…

 

[Leticia] Pode ser.

 

[Patrizia] Pode ser quando há uma exposição, quando as obras de arte são submetidas a exames. Talvez por precisar fazer alguma restauração, porque precisa fazer alguma ação em particular, e aí pode acontecer de descobrirem que a tinta ou algum elemento da tinta não é do mesmo período da tela.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Ou então não é… Não é… Tipo… Ligado também às restaurações, ou seja, foram usados materiais que naquela época não existiam.

 

[Leticia] Ah, entendi. Caraca…

 

[Patrizia] E isso pode ser um motivo, ou então se faz alguma comparação com outras obras, mas determinar o que é falso realmente não é fácil.

 

[Leticia] Imagino! Principalmente se eles chegam a essa sofisticação, a esse nível de esforço, enfim, pra fazer com que o quadro passe por verdadeiro, não deve ser nada fácil…

 

[Patrizia] Existem falsificadores na história que venderam muitas obras a colecionadores e depois essas obras foram parar em museus, exatamente porque eles eram artesãos, eram artistas mesmo, e sabiam fazer obras com as mesmas técnicas, com as mesmas modalidades, realmente não é fácil. E aí a essa altura do campeonato essas obras também já viraram obras antigas que fazem parte dos museus, né?

 

[Leticia] Eu acho que sim, né, porque tem uma história interessante por trás…

 

[Patrizia] Elas têm uma história por trás…

 

[Leticia] Pois é… E quando é o contrário que acontece, tipo, encontram um quadro que ninguém esperava, como aconteceu essa semana, saiu dias atrás a notícia de um, o que era, um Magritte? Não lembro mais. Um quadro que foi encontrado durante uma faxina, sei lá, era um…

 

[Patrizia] Então, eu lembro que saiu há pouco tempo a notícia de um Cimabue que foi encontrado na cozinha…

 

[Leticia] Não, essa eu não… Essa eu não tinha visto, tô mais chocada ainda! (risos) Oooh um Cimabue!!!

 

[Patrizia] Na França, na casa de um senhor, na roça, foi encontrado esse pequeno, essa pequena pintura de Cimabue, que ele guardava na cozinha, e depois foi avaliada em tipo 24 milhões de euros, uma coisa inacreditável…

 

[Leticia] E quando acontece algo assim, como se faz? Tipo, essa, esse quadro, essa obra, é desse senhor, ou tem, eu imagino que mude de país pra país, de repente tem uma lei que obriga quem encontra certas obras a ceder pros museus ou pro governo ou sei lá, não sei. Como funciona?

 

[Patrizia] Bom, depende, nesse caso também depende do país. Cada país tem regras diferentes. Na Itália, por exemplo, pode acontecer muito frequentemente com achados arqueológicos…

 

[Leticia] Ah sim.

 

[Patrizia] Porque de repente, sei lá, um camponês vai arar o seu terreno e do nada acha uma necrópolis. Pode acontecer. Aí se chama “encontro fortuito”, ele deve chamar a superintendência, ou seja, o órgão de tutela, e aqueles objetos, como tudo o que é encontrado na Itália embaixo da terra pertence ao Estado…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …aqueles objetos devem passar pra propriedade do Estado. Mas o Estado reembolsa em parte…

 

[Leticia] Ah ok.

 

[Patrizia] o valor do objeto ao proprietário. Se uma pessoa dá a sorte de encontrar, sei lá, um Cimabue em casa, ela não é obrigada a comunicar nada. Vai poder escolher entre ficar com ele ou vender.

 

[Leticia] Aaaah entendi…

 

[Patrizia] Mas na hora em que você tenta vender, aí o Estado pode intervir, pedindo o direito de prelação. Isso também aconteceu com o Cimabue da França, porque a França decidiu que o Cimabue não vai mais sair de lá, vai virar patrimônio nacional, então o Estado vai comprar a um preço mais baixo, obviamente. Mas o senhorzinho que encontrou o quadro tá com a aposentadoria mais que garantida.

 

[Leticia] Caramba! Eu sempre me pergunto que histórias têm essas coisas, sabe, como o quadro foi parar ali, que percurso estranho ele deve ter feito pra acabar na cozinha de um camponês que não sabe o que era e de repente até ia jogar fora se tivesse que se mudar, sei lá…

 

[Patrizia] Aí é realmente muito difícil imaginar como aquele Cimabue chegou ali. Dificilmente ele tá ali desde o século XIV.

 

[Risos]

 

[Patrizia] Esse… No caso de obras assim pequenas, que com certeza fazem parte de uma obra maior, as possibilidades são numerosíssimas, muitas obras também foram confiscadas durante a Guerra…

 

[Leticia] Aaaaah sim, putz, também tem isso…

 

[Patrizia] Também tem isso, e não tem como saber se de repente um soldado… Pegou partes da pintura naquela confusão absoluta que rolava naquele momento, e botou na mochila…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …e levou embora pra outro lugar. Não sei. Esse é um trabalho que tá sendo feito agora, principalmente com relação às coleções hebraicas…

 

[Leticia] Ah, interessante, devem aparecer umas histórias fantásticas, não?

 

[Patrizia] Pois é, porque muitas famílias denunciaram ao longo dos anos a perda ou o furto das suas próprias coleções, que foram ou confiscadas por causa das leis raciais, ou perdidas porque as famílias precisaram abandonar suas casas e tudo o que tinha dentro sumiu, e agora estão tentando trabalhar pra recuperar essas, essas obras. Não só as coleções alemãs.

 

[Leticia] Ah, saquei.

 

[Patrizia] Nas americanas e nas europeias também, tem advogados que estão trabalhando com essas famílias pra recuperar os objetos, se for descoberto que os bens deles foram parar em museus.

 

[Leticia] Caramba… Imagina quanto tempo já passou e quantas coisas ainda precisamos entender, descobrir… Cacete, que trabalho infinito que vai dar…

 

[Patrizia] Porque muitas vezes essas famílias no início não falaram nada. Precisaram elaborar muito o trauma…

 

[Leticia] Compreensivelmente.

 

[Patrizia] Então são coisas que quem falou foram os netos, sabe. 

 

[Leticia] Saquei.

 

[Patrizia] …mais do que eles mesmos. Em muitos casos atrás das pinturas tinham etiquetas ou carimbos, e graças a eles podem ser recuperadas. Mas não é fácil, sabe, recentemente foram feitas exposições de obras confiscadas, principalmente em países da área germânica…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] E se está trabalhando nesse momento nesse temas..

 

[Leticia] Hm. Essa dificuldade de rastrear a origem das obras, eu lembro… Eu fiz dois anos de Comunicação Internacional aqui em Perugia muitos anos atrás, antes que… Antes da minha filha nascer, e eu fiz História da Máfia, que era uma das matérias. E a professora dizia que essa dificuldade de determinar a origem dos objetos e das obras torna muito apetitoso como forma de investimento, sabe, essa coisa da arte. Porque é muito fácil, você, sei lá, tem, compra um móvel antigo, pra lavar seu dinheiro ganho ilegalmente, e compra esse móvel antigo, muito, de muito valor, qualquer um pode chegar e dizer ‘olha, herdei esse móvel do meu bisavô’, porque ninguém nunca vai conseguir provar o contrário, né.

 

[Patrizia] Isso.

 

[Leticia] Então tem todo esse lance da dificuldade e tal que no fim das contas torna possível esse tipo de coisa. Isso ainda acontece muito? Quer dizer, a máfia, e eu tô falando da máfia porque pensei nisso agora, mas ainda se faz esse tipo de investimento porque é fácil de, tipo, enganar o governo e tudo o mais?

 

[Patrizia] A máfia… Sim, sim e não, eu não tô muito bem informada do lance da máfia, não, digamos que o furto mais famoso ligado à máfia é o caso do Caravaggio de Palermo.

 

[Leticia] Ai, sim, sim! A gente botou o link pra essa notícia na… Na pauta, porque é uma história sensacional.

 

[Patrizia] Essa é uma história sensacional, mas digamos que aqui a gente sabe que a máfia estava envolvida. Em termos de aquisição de bens, sim, é provável que eles também sejam considerados interessantes, e quanto mais desaparece, digamos, o local de origem, mais valor eles têm. Por exemplo, agora tão sendo muito procurados no mercado tudo o que possa vir de Palmira.

 

[Leticia] Aaaaaaaah sim, faz sentido…

 

[Patrizia] Porque muito provavelmente, parece que sim, tá, mas nada certo, mas por exemplo, parece que todos os alto-relevos dos templos que depois foram destruídos não foram destruídos junto com os templos, mas foram tirados pra revender…

 

[Leticia] O quê!

 

[Patrizia] …pra financiar a compra de armas.

 

[Leticia] WHAT!!! 

 

[Patrizia] Então o templo teria sido destruído pra encobrir isso.

 

[Leticia] Que plot twist!

 

[Patrizia] Exato! Pra não deixar ver os buracos que ficaram, o templo foi destruído. Parece que mais por isso do que por vontade de destruir o patrimônio.

 

[Leticia] Cara…

 

[Patrizia] O que na verdade é uma coisa que atinge muito a gente no Ocidente…

 

[Leticia] Caramba, sim, é doloridíssimo de ver. Tô ouvindo o barulho de novo, Patrizia.

 

[Patrizia] Com certeza sou eu com o dedo segurando o computador.

 

[Leticia] Sim, é doloridíssimo de ver, né, como os Budas no Afeganistão, que são coisas que dão um aperto no coração.

 

[Patrizia] Mas os Budas foram destruídos por outros motivos, né. Aqui parece que pra encobrir esse tráfico. Esse tráfico ilegal, que é uma das principais fontes de financiamento do terrorismo.

 

[Leticia] Olha só, não sabia disso… Caramba, tô aprendendo um monte de coisas, essas são as entrevistas que eu amo, aprendo um monte de coisas que eu não conhecia. Vou fazer duas perguntas no nome do meu colega e depois te libero. Ele tinha falado da morte do Roger Scruton, não sei como se pronuncia esse sobrenome, na verdade. Que era um estudioso de estética…

 

[Patrizia] Filósofo também.

 

[Leticia] Sim, filósofo, apreciava a estética mais clássica…

 

[Patrizia] Um conservador…

 

[Leticia] Sim, um conservador, enfim, um chatonildo que achava feio tudo o que não era clássico, né. Como são esses, esses padrões de beleza ao longo do tempo, essas mudanças? É uma coisa espontânea, orgânica, ou tem uma determinação das camadas mais… Das elites, ou dos especialistas… Como funciona?

 

[Patrizia] A crítica certamente condicionou o gosto na arte, em alguns momentos certos artistas foram apreciados e outros não. Vou usar como exemplo o próprio Caravaggio. No século XVIII ele já não era mais considerado um artista importante, não era um artista apreciado, porque os padrões estéticos que eram impostos eram os do neoclassicismo…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Então uma pintura que se inspira no ideal estético clássico naturalmente não pode apreciar um naturalismo tão real quanto o das obras do Caravaggio. Então o Caravaggio começou a não ser tão apreciado, tanto que mesmo quando foram feitas as campanhas napoleônicas confiscando obras de arte, que são consideradas um dos furtos mais famosos, embora furto seja a palavra errada…

 

[Leticia] Sim, hehehe…

 

[Patrizia] …campanhas feitas na Itália, o Caravaggio não era tãaao levado em consideração. As obras de arte que eram confiscadas eram as do Renascimento e do período Clássico.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Então Guido Reni, Carracci, sei lá, esses artistas, e não o naturalismo, era o que agradava. O fenômeno da redescoberta começou no século XX, principalmente com Roberto Longhi, depois uma mostra em 1951, quando o Caravaggio foi redescoberto e se tornou o que é hoje.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Porque senão ele não era considerado, enfim, não agradava, são padrões de… de gosto. Imagina quando foram feitos… Quando começou a aventura da arte dos impressionistas, nos Salões de 1863, por exemplo, O Almoço na Relva foi reprovado.

 

[Leticia] Imagino, uma ruptura assim…

 

[Patrizia] Foi redescoberto depois. Há uma crítica, digamos, uma corrente crítica, que aprecia um tipo de arte em vez de outra, e assim determina a sorte ou não. Pensa no ideal estético clássico que Hitler tinha.

 

[Leticia] Sim.

 

[Patrizia] E depois na Mostra de Arte Degenerada de 1937. Que ele opôs à Mostra de Arte Alemã…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …mostrando como a arte alemã que se inspirava nos ideais clássicos era aquela que devia ser levada em consideração, enquanto que a outra deveria ser destruída, porque os pintores usavam um padrão estético, um modo de pintar…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …que não era apreciado por aquele tipo de estética que ele queria promover, isso sem contar o fato de que também tinha todo o lance racial e tudo o que era ligado ao povo judeu, mas ele não gostava mesmo daqueles tipos de obras, elas não eram incluídas no ideal que queria refletir o classicismo, o estilo grego, a pureza, a perfeição das formas, que era propagandeado naquele momento.

 

[Leticia] Entendi.

 

[Patrizia] Então em nome desse ideal clássico é possível fazer abominações, enfim.

 

[Leticia] Sim, putz, sim, sim. E isso tá de acordo com o que a gente ouviu entre ontem e hoje aqui no Brasil, quer dizer, lá no Brasil, não sei se você viu, eu sei que apareceu, começou a aparecer nos jornais estrangeiros, do secretário da cultura que fez um, um discurso absolutamente abominável, falando exatamente, usando frases inteiras de Goebbels, falando exatamente…

 

[Patrizia] Não acredito…

 

[Leticia] Sim, uma coisa inacreditável, ‘arte pura, verdadeira, ou então não haverá nada’, coisas desse tipo, com uma estética muito nazista, uma cruz em cima da mesa e Wagner tocando no fundo, então ele defende a brasileira como se ela, como se a cultura brasileira fosse uma coisa europeia, o que obviamente é uma idiotice, e desprezando toda, tudo o que os africanos e povos originários trouxeram ao Brasil, e ao mesmo tempo ele se declara muito patriota, muito nacionalista, mas bota esse Wagner no fundo, que não tem porra nenhuma a ver. Então é toda uma imbecilidade que por acaso tem tudo a ver com essa pergunta que o meu colega tinha feito dias atrás. No fim das contas, tamos aqui.

 

[Patrizia] Assustador, porque tudo o que fala do belo, ou seja, o belo como ideal, como estética,

 

[Leticia] Sim.

 

[Patrizia] Aquilo que não é belo se torna feio, e o que é feio pode ser destruído, e isso é uma coisa realmente horrível!

 

[Leticia] Sim.

 

[Patrizia] Enquanto que aqui, por exemplo, estamos tentando ler com outros olhos, nos esforçar pra ler com outros olhos um tipo de cultura que não é a nossa, exatamente pra encontrar a função natural de certos objetos, eu tô pensando no que você disse sobre a arte africana, ou seja, obras que vieram de museus dedicados à arte colonial, ou à arte africana, estamos tentando restituir esse valor cultural, simbólico, religioso, dos objetos, pra além da estética…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Me parece que o discurso do presidente do Brasil é o oposto…

 

[Leticia] Nem me fala, só tem idiota no governo dele, começando por ele mesmo, que é um imbecil. O cara já foi mandado embora, acho, depois de uma manifestação da embaixada alemã em Brasília porque né, cê não pode deixar uma coisa assim passar, né? Houve houve manifestações várias contra essa coisa inacreditável e o cara foi mandado embora, mas certamente vai entrar alguém pior ainda no lugar dele, porque é isso que vem acontecendo nesse último ano, infelizmente.

 

[Patrizia] Poxa, espero que não!

 

[Leticia] Um negócio pavoroso. Mas ainda falando de governos péssimos, vou fazer a última pergunta, do meu colega também: vamos falar desse desconforto que a arte causa. Por que tem um tipo de arte que incomoda tanto certos governos, ou certas correntes de pensamento político? Por que existe esse… Esse ódio aparentemente gratuito, embora a gente saiba que gratuito não é, mas por que esse ódio contra certos modos de fazer arte, esse considerar arte o que você gosta e não-arte o que você não gosta? E existe nos museus que você conhece, ou com os quais você tem mais contato, onde você conhece gente que trabalha, sei lá, existe alguma obra que você goste que quando foi feita ou exibida causou polêmica e virou O assunto?

 

[Patrizia] Sim, mas depende da polêmica, vou te dar um exemplo famoso da Itália. Quando a diretora da Galeria Nacional de Arte Moderna de Roma, a Palma Bucarelli, comprou obras de Burri…

 

[Leticia] Ah sim…

 

[Patrizia] Foram feitas críticas inclusive pelo próprio governo, porque foram usados fundos públicos…

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] …naquele caso, porque era um museu nacional, pra adquirir obras de arte que não eram bonitas. Que não eram consideradas bonitas. Ou imagina o caso do Manzoni, o famoso… a lata com merda de artista…

 

[Leticia] Sim, sim!

 

[Patrizia] Porque continha excrementos, e por sinal nem se sabia se realmente…

 

[Leticia] Exato, exatamente, o mistério faz parte da coisa…

 

[Patrizia] Naquele caso sim, em termos de obras politicamente, digamos, perigosas, eu não tenho grandes exemplos na Itália. Mas artistas podem ser perigosos.

 

[Leticia] Uhum.

 

[Patrizia] Então tem o exemplo do Ai Wei Wei na China…

 

[Leticia] Sim, sim… Que a gente adora, vimos uma mostra em Belo Horizonte ano passado… Teve um evento de podcasts nesse outro estado… Eu moro em um estado do sul do Brasil, embora eu seja do Rio, e o meu colega moro em outro estado também no sul, e fomos a esse outro estado pra um evento de podcasts. Por sorte pegamos o último dia da mostra do Ai Wei Wei em um centro cultural que por sorte ficava pertinho do local onde rolava o evento, então a gente viu com pressa, mas viu. E são coisas fantásticas, a gente entende o motivo de toda a polêmica e por que ele foi preso, e tal.

 

[Patrizia] Exato. Exato. Ele como ativista dos direitos humanos, obviamente foi censurado, foi preso, sabe, por muitos anos ele ficou sem passaporte…

 

[Leticia] Sim.

 

[Patrizia] E aí nesse caso é mais ligado à figura dele que… que a outras coisas. Mas por exemplo existem leituras de histórias que são definidas controversas dentro dos museus, que por exemplo nos Estados Unidos estão dando muito o que falar.

 

[Leticia] Hm.

 

[Patrizia] Com relação, por exemplo, a alguns museus que expõem retratos de pessoas ligadas ao período no qual ainda havia escravidão.

 

[Leticia] Ah tá.

 

[Patrizia] Então ali eles dizem, bom, foi feito o retrato dessa mulher elegante, com essas roupas e tal, mas ela só podia viver assim porque tinha escravos…

 

[Leticia] Só porque tinha…

 

[Patrizia] Então tem legendas que tentam explicar esses aspectos. E o mesmo também aconteceu na Holanda, com exposições onde de repente junto de vasos preciosos também colocam correntes…

 

[Leticia] Aaaah ok…

 

[Patrizia] …usadas pelos escravos, dentro da mesma vitrine, pra mostrar que sim, tinha alguém com dinheiro pra comprar aquele vaso, mas esse alguém era servido por escravos.

 

[Leticia] Entendi.

 

[Patrizia] Ou nos Estados Unidos, agora existem objetos que se referem, por exemplo, à Ku Klux Klan, e de repente dentro do berço do bebê, branco, na mostra, colocam a clássica túnica da KKK, pra mostrar como a população, nesse caso a afro-americana, sofreu nos anos 60 esse tipo de afronta.  

 

[Leticia] Bom, aí você entra num lance de ética bem complexo, né? Porque cê faz o quê, finge que essas coisas nunca aconteceram, ou cancela completamente um artista porque ele participou disso ou daquilo, enfim, não é, não são escolhas simples, não, eu entendo…

 

[Patrizia] Não, não são escolhas fáceis, até porque em alguns casos a gente sabe, muitos artistas na época foram acusados… Gauguin, disseram dele que era pedófilo…

 

[Leticia] Uhum. Sim, sim.

 

[Patrizia] Então, você não leva mais a arte dele em consideração porque TALVEZ ele fosse pedófilo? E nesse caso nem temos provas… É realmente muito difícil falar desses temas, mas são assuntos dos quais a gente agora precisa falar, porque os museus tão cada vez mais envolvidos inclusive socialmente, e não só sob o perfil estético, mas são lugares que devem iniciar discussões. Devem levar a comunidade a refletir sobre os problemas contemporâneos, a se interrogar e também a fazer com que a sua própria voz seja ouvida.

 

[Leticia] Sim, sim, é verdade, são discussões que precisam ser feitas, principalmente nos tempos atuais; talvez a gente não tenha tido essas conversas antes, e agora tá tudo, tá tudo caindo nas nossas cabeças e estamos na merda. Talvez se esses debates tivessem sido um pouco mais frequentes no passado a gente não estaria na nossa situação atual, mas é impossível prever, então a gente faz o que pode.

 

[Patrizia] Agora no Hermitage em Amsterdã tem uma exposição linda sobre retratos do século de ouro da Holanda. E tem todos esses personagens, naturalmente usando roupas de gente de uma certa classe social, e são todos brancos. Então foi feita uma ação de ativismo pra redescobrir também as pessoas de cor que naquele período tinham dinheiro pra mandar fazer retratos. Mas que não eram retratadas. Então pegaram pessoas negras que posaram usando aquelas roupas, e foram pintados pra recriar as histórias dessas pessoas que foram…

 

[Leticia] Fantástico!

 

[Patrizia] E é muito interessante, porque começamos a ver que talvez não fosse tudo assim como a gente imaginava ou como contaram pra gente, a história não é branca ou preta, tem muitos outros tons intermediários que é preciso que a gente conheça porque as nossas sociedades tão cada vez mais, e eu tô falando da Europa, multiétnicas, precisamos conviver nelas e não pensar que seja um fenômeno atual, porque ele sempre ocorreu.

 

[Leticia] Sim, o ser humano nunca parou quieto, né?

 

[Patrizia] Exatamente, precisamos aprender que somos filhos dessas migrações, e então é necessário olhar pra elas com olhos mais abertos.

 

[Leticia] Ótimo.

 

[Patrizia] Isso pode ajudar a incluir esses novos cidadãos na vida cultural, serve pra gente também, enfim.

 

[Leticia] Sim sim. Perfeito. Ah, tô feliz, aprendi um monte de coisas. Agora vou transcrever tudo, traduzir tudo… Escuta, MUITO obrigada, eu sei que foi uma zona..

 

[Patrizia] Imagina!

 

[Leticia] É tudo culpa da Tim. Vamos tomar um café um dia desses?

 

[Patrizia] Claro!

 

[Leticia] Eu vou ficar na Úmbria, aqui na Itália, até 5 de fevereiro, depois volto pro Brasil e só apareço aqui de novo em julho…